domingo, 29 de março de 2015

O HOMEM QUE ROUBARAM O CORAÇÃO!

Marconi de Souza Reis

Pedro sentiu uma forte dor no peito esquerdo na academia de ginástica e foi levado às pressas pela esposa à emergência de uma clínica. Chegando lá, a médica pediu que os deixassem a sós numa saleta, para melhor auscultar o seu coração. Denise, a esposa, obedeceu ao pedido e o aguardou lá fora, numa ante-sala...
Sem demora, a médica pôs o estetoscópio, apertando-o sobre o peitoral de Pedro, e fez cara de espanto! Não resignada, pediu a ele que respirasse fundo para auscultar as batidas. E repetiu a cena por várias vezes, no silêncio da sala, onde, a rigor, só se ouvia a respiração demais ofegante do cara...
– Estou perplexa, desistiu a médica, abraçando as hastes do estetoscópio no fino pescoço!
– Como assim?, questionou Pedro, desconfiado.
– Eu não consigo ouvir o seu coração... Ele não bate, diagnosticou!
A frase da médica soou-lhe mais lírico do que clínico, daí que, malandro da poesia, fez cara de coitado e a encantou como se estivesse à beira de outro tipo de morte...
– Eu sei, doutora. Aí tem um vazio de amor...
Ela riu de molhar... Entreolharam-se na mesma direção, preguiçosamente, como se deitados numa praia distante,
enluarada, auscultando apenas as ondas do mar solando o nascimento de uma paixão! E tudo germinou ali, em segundos, como eles nunca souberam explicar depois, enquanto a paixão durou...
Sob o cheiro de éter, Pedro apalpou levemente a mão da bela jovem médica de olhos claros – que, de tão branquinha e cheia de sardas no rosto, mais parecia o céu com estrelas ao meio-dia –, e recitou pausadamente um poema de Ferreira Gullar, o único que ele sabia de cor naquela fase da vida:
“Cantiga para não morrer
Quando você for-se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento”.
Atordoada – ela não entendia como o paciente era capaz de recitar um poema tão lindo sabendo do silêncio no seu peito –, a médica piscou demais os cílios, e Pedro, rindo da solidão naqueles olhos, apertou agora a sua cintura, para, afoito, dar-lhe um beijo nos lábios por uns cinco, ou talvez mais, segundos!
Incontinenti, a enfermeira adentrou a saleta – acompanhada de Denise, a esposa de Pedro! Esquivando-se a tempo de não ser flagrada naquilo, a médica deu um laço nos cabelos, pegou o aparelho de pressão e, colocando outra vez o estetoscópio nas orelhas, começou a bombear o sarado bíceps de Pedro...
– 12 por 8...!!! Está com a pressão normal, comentou, com olhar ainda atordoado da cena de outrora.
– E o que causou aquela dor no peito?, questionou Denise, sonhando com uma possível viuvez.
– Deve ter sido apenas gases...
– Só isso, doutora?, insistiu a esposa.
– Sim... A única coisa estranha é que não consegui auscultar o coração do seu marido.
– Tenta novamente, pediu Pedro.
A médica então apalpou o estetoscópio, fixou-o entre as orelhas e, para sua surpresa, o coração de Pedro disparava – tal cavalo selvagem em círculos num curral de adestramento –, a ponto de ela retirar o aparelho com um lindo sorriso, encantada, para exclamar a paixão agora já nascida no peito do paciente...
– Oh, meu Deus! Bate tão forte que até dói nos meus tímpanos.
E ele reagiu, como se ainda ouvisse Gullar:
– Talvez seja com medo de um dia não ser lembrado no seu esquecimento...
A médica riu de molhar outra vez, e a esposa de Pedro, inculcada com esse diálogo, foi da clínica até a residência questionando-o sobre o que houve na sala a sós. Com o coração longe, ele não deu resposta... Apenas cantarolava no pensamento as canções que o acompanham nesses lances inusitados.
Quinze dias depois, voltou à clínica para apresentar os exames, mas, para seu desalento, foi atendido por um médico, que detectou apenas triglicérides acima do normal. Prescreveu-lhe uma dieta para reduzi-lo, elogiou a sua forma física – Pedro tinha 36 anos de idade –, mas o cara só pensava nela:
– O senhor por acaso conhece a médica que prescreveu meus exames?, perguntou.
– Sim... É a doutora Marília. Ela trabalha na emergência da clínica. Está lá agora...
Pedro se despediu às pressas e foi lá, onde, através de uma sala cheia de vidros, avistou Marília. Vendo-o também, ela apenas acenou discretamente. E lá ficou... E de lá não saiu... O mundo desabou em Pedro, que ainda tropeçou numa lata de lixo. E dali se foi, agora sim, com o coração a perigo.
Entrou no carro como se tivesse perdido um grande amor, sem se dar conta de que tudo dantes fora apenas um singelo carinho. Ligou o som do carro, para ouvir “Heal the Pain”, a melhor de George Michael, e que receberia, anos depois, versão definitiva de Fernanda Takai. E chorou até a sua casa...
Um ano se passou, e eis que numa madrugada de domingo, Pedro acordou aos vômitos ininterruptos, como sempre ocorria na juventude quando ingeria álcool além do normal. Procurou o telefone da Vitalmed – empresa que lhe dava socorro nessas horas –, ligou e foi esperá-la na varanda da casa.
Assim que a ambulância parou em frente ao portão, pela brecha da caixa dos correios Pedro avistou quem era a médica, e, tremendo como um menino, correu para escovar os dentes. Ainda assim, percebeu que fedia a vômito... Por isso, perfumou-se também! E foi atendê-la segurando o estômago.
Pedro estava belo de dar fome à mais frígida das mulheres – os vômitos seguidos enxugaram suas curvas já definidas –, daí que fez questão de ir daquele jeito: de calção preto, sem camisa, sem cueca e descalço. E abriu a porta devagarzinho, com carinho e frases feitas para a surpresa já sabida.
O susto bacana de Marília foi maior do que o seu minutos antes – expresso num riso mais eficiente do que a necessária dose de glicose com "dramin" –, a ponto de ele nem solicitar o socorro na veia. Assim que fechou o portão, nem se deu conta do perigo e tascou-lhe ali o mais inesquecível beijo da sua vida...
Não rolou nada além do amasso, posto que, além do vômito recrudescido, ele jamais iria consumar aquele desejo na sua própria residência. Mas a partir daquele dia nunca mais se separaram, ou parecia que isso nunca aconteceria, tamanha química, carinho e paixão vertiginosos entre eles só no olhar...
Acontece que Marília cobrava uma atitude de Pedro – queria tê-lo só para ela –, mas o cara sempre tinha uma desculpa, uma demora, um talvez... Na verdade, Pedro nutria uma veneração sem tamanho por Denise – sua divina humildade, seu caráter centrado, enfim, virtudes jamais avistadas em outra mulher.
Os meses foram deslustrando a paciência de Marília, até que, num dia de chuva fina na cidade praieira, ele a flagrou com um ex-namorado (também médico) aos beijos no estacionamento da clínica. Ela não o viu, mas a cena calou seu coração, de modo que o próprio nem o auscultaria, caso desejasse!
E decidiu não vê-la nunca mais... Não atendia sequer as suas ligações – inicialmente diárias, depois a cada hora e, enfim, por minutos a fio. Um dia, de tão insistentes e irritantes as chamadas, ele cedeu a um telefonema... Monossilábico, não deu qualquer motivo para seu súbito afastamento.
A enorme vaidade de Pedro não o permitia enfrentar a traição – nem mesmo com ela. Ouvia apenas Marília querendo saber se ele “soube de alguma coisa”, tal qual uma ré que não conta a verdade ao advogado, alvejando que a astúcia do causídico seja capaz de absolvê-la! E ali acabou o romance...
Marília foi a única traição conhecida por Pedro, pelo menos que ele saiba. E isso é o que importa, afinal, como alerta o aforismo, “o que os olhos não veem o coração não sente”. Mas o cara sofreu muito, provou do seu infinito veneno, a ponto de não fazer outra coisa senão tocar “Heal the Pain” ao violão...
Durante uns 60 dias, pelo menos, a vida pareceu-lhe uma eternidade ruim, chata, sem sabor... Acontece que foi apenas esse o tempo necessário para esquecer tudo e já posar num outro colo, como se o seu coração tivesse asas capazes de voar por aí, tal beija-flor encantando as flores...
Marília o encontrou anos depois num shopping da cidade. Em rápida conversa, Pedro apenas explicou que, indubitavelmente, ela profetizou o silêncio no seu peito quando o auscultou na primeira consulta... E despediu-se assim, com um riso no rosto: “Meu coração voou, doutora...; era um passarinho. Você soltou!”.

O autor:
MARCONI SOUZA REIS


Formado em JORNALISMO  (UFBA) e DIREITO (UNIME). 
Cursou os cursos de Processamento de Dados (UFBA), 
Matemática (UCSAL), Educação Física (UCSAL), 
Medicina (UFBA), Filosofia (UCSAL) e Música (UCSAL), 
embora sem concluí-los.










GEORGE MICHAEL - HEAL THE PAIN

5 comentários:

  1. Vou esperar virar filme, muito longo o texto!!!!

    ResponderExcluir
  2. Poesia é igual saia de mulher quanto mais curto melhor!!!

    ResponderExcluir
  3. Nossa muito linda história de paixões repentinas...

    ResponderExcluir
  4. Razoável. Já li bem melhores. Um curso extensivo de literatura redacional seria interessante no seu caso.

    ResponderExcluir

Comentários sem o seu NOME não serão aprovados

MATÉRIAS ASSINADAS , com FONTE, são de responsabilidade de seus autores.

contatos blog: whats: (77) 98128-5324

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.